Mesmo em tempos de privação e de necessidade de interiorização, existe sempre algo belo a acontecer à nossa volta. Desta vez, é a primavera. Os dias ficam mais longos, os pássaros passeiam pelo ar, passando nas nossas janelas e varandas e cantam-nos uma canção de esperança com o seu chilrear tão característico. As paisagens ficam verdejantes, as flores desabrocham e as borboletas presenteiam-nos com a sua beleza e elegância.
Primavera, o reinício
No dia 20 de março, a primavera chegou, e na madrugada do passado domingo, dia 29 de março, a hora mudou – estamos agora na tão sonhada e esperada Hora de Verão. Dormimos menos uma hora, é certo, mas temos mais umas horas de sol.
A primavera eleva a esperança a um novo patamar este ano: a possibilidade de dificultar a propagação do Covid-19. Ainda que não existam evidências científicas, há cientistas que creem que o bom tempo atrasa a propagação do vírus. Independentemente de se vir ou não a confirmar, a verdade é que a primavera traz inúmeros consolos e alegrias, mesmo em tempo de isolamento preventivo. Esta época de recomeços muda a nossa perspetiva da vida. Começamos a pensar e analisar como agimos e interagimos com os outros, o que devemos mudar, o que queremos alterar e quais as verdadeiras prioridades da vida.
Segundo a cientista comportamental Katherine Milkman, da Wharton School da Universidade da Pensilvânia, nos EUA, “normalmente, o início da primavera faz-nos sentir mais motivados, a chamada ‘fresh start date’ [novo reinício]”. Dessa forma, desconecta-nos do passado e deixa-se envolver por um enorme desejo de dar a andamento a novos projetos, resgatar ideias antes postas na gaveta, fazer remodelações, etc. No fundo, a primavera traz-nos a enorme vontade de tirar o velho para dar lugar ao novo.
Assim, diz, em declarações ao jornal britânico The Guardian, “essa desconexão dá-nos a sensação de que tudo o que não conseguimos anteriormente, podemos conseguir agora. Talvez tente novamente deixar de fumar, desta vez com êxito, ou inicie uma rotina de exercício físico.”
Estes momentos tendem a promover uma altura de introspeção, de forma a analisar e redefinir objetivos e maneiras de os atingir, explica a especialista. Redefinir os objetivos é extremamente importante, especialmente agora nesta altura em, ao deparar-se com problemas de saúde, financeiros ou profissionais, trabalhando em regime de teletrabalho com as crianças em casa. O efeito dessas mudanças pode obrigadar a que todas as atividades que têm objetivos específicos podem ter de sofrer alterações, que podem incluir “desde decisões sobre a prática de exercício físico até às poupanças para a reforma.”
Primavera: a eterna aliada da da saúde mental
A primavera tem ainda a capacidade de nos fortalecer, uma vez que alivia o seasonal affective disorder (transtorno afetivo sazonal, de sigla sad).
Mesmo que não tenha um caso clínico de depressão diagnosticado, Hugh Selsick, presidente do grupo de trabalho sobre sono do Royal College of Psychiatrists, “a maioria das pessoas irá experimentar alguma melhoria do humor nos meses de primavera e verão“.
Diversos estudos que analisam as populações da América do Norte ilustraram a relação entre a primavera e verão e a melhoria da saúde mental.
“No inverno, quanto mais a norte estivermos, pior fica o nosso humor”. Tal deve-se à fraca exposição de luz natural.
“Para nós [no norte], a recompensa é que também recebemos esses dias longos e muito agradáveis de primavera e verão.
Como seres humanos, evoluímos num lugar tropical, onde havia muito mais luz”, explica Hugh Selsick, o que significa que o nosso cérebro evoluiu de forma a esperar uma certa quantidade de luz. “Provavelmente é por isso que somos tão suscetíveis a mudanças de luz natural”, elucida. E é também pela falta dela que os meses mais sombrios podem afetar negativamente os padrões de sono e humor.
De acordo com o especialista, os sintomas de tristeza/depressão aliviados pela primavera são o humor (que melhora consideravelmente), o cansaço (fica menos intenso), o ciclo de sono (dormimos mais do que o necessário nos dias cinzentos e chuvosos de outono e inverno) e a alimentação (no outono e inverno sentimos uma maior necessidade de ingerir hidratos de carbono e doces).
A primavera em tempos de quarentena
Atualmente, em período de quarentena, a maioria das pessoas podem apenas sair para ir passear os cães, fazer compras essenciais (como no supermercado e farmácia), e fazer um passeio higiénico com as crianças bem como para manter uma breve rotina de exercício ao ar livre.
Segundo Hugh Selsick, a luz natural matinal da primavera é crucial para definir os ritmos circadianos. “É muito melhor sincronizar os relógios do corpo e voltar a sincronizar com o mundo exterior”, diz.
Quando está escuro, o nosso corpo produz melatonina, que atua no corpo e fazendo com que fiquemos mais cansados e sonolentos.
Já a luz natural matinal, sob a qual toma o seu chá ou café, “é muito eficaz para ‘desligar’ a melatonina, informando dessa forma o cérebro e o resto do corpo que é hora de estar acordado e ativo.
Temos um conjunto especial de recetores nos nossos olhos que comunicam diretamente com o relógio biológico, situado no cérebro. Eles são particularmente sensíveis à luz azul esverdeada que, num dia ensolarado, é a cor do céu. Portanto, esse tipo de luz solar intensa (a luz externa) é a luz a que os nossos cérebros são particularmente sensíveis”, explica.
Ou seja, a exposição a essa luz logo pela manhã ajuda-nos a acordar e melhora o humor. Além disso, “ajuda a regular o sono. Se seu corpo sabe quando o dia está começando, é mais fácil saber a que horas precisa começar a relaxar e preparar-se para dormir”. Também dormir bem tem um outro efeito positivo: o de haver uma maior probabilidade de acordar bem disposto, feliz e ter uma boa saúde.
O papel da luz matinal no isolamento
O grande perigo de estar em isolamento social é o de “permitir que todo o seu ritmo flutue”, adverte Selsick. Mesmo que possa dormir um pouco mais, tente manter o horário de despertar similar, de forma a obter os benefícios do sol da primavera. Isto porque se estiver a “receber a primeira dose de luz num horário diferente todas as manhãs, o seu corpo não perceciona o tempo” e isso acaba por confundi-lo e alterar o ciclo circadiano, elucida.
Definir horário de se ir deitar e levantar, bem como de refeições ajuda a manter um ritmo diário.
É muito importante aproveitarmos as oportunidades que temos para estar out doors (sem ser entre quatro paredes), seja isso num passeio higiénico de curta duração pelo quarteirão da sua residência (caso não seja grupo de risco e não tenha qualquer sintoma), seja no jardim, no terraço, na varanda ou mesmo na janela. “Quanto mais ao ar livre puder estar, melhor. Isto sem entrar em contato próximo com outras pessoas”, enfatiza Selsick.
De acordo com o investigador a luz do final de dia parece ter afetar menos os ritmos circadianos do que os primeiros raios de luz da manhã. Aliás, há pessoas que relatam ter uma melhor qualidade de vida quando têm mais horas de luz.
Tal facto está espelhado na conclusão de um estudo realizado em 2016 por uma equipa de cientistas da Universidade de Brigham Young, no Utah, nos EUA. Os investigadores analisaram seis anos de dados de mais de 16 mil adultos e constatou que o aumento de horas solares sazonais se correlacionavam com uma diminuição de problemas de saúde mental.
Estamos de quarentena em casa, sim. Estamos todos assustados, emocionalmente exaustos, mas temos uma nova estação a começar. A primavera, lá fora, traz-nos sol, novas cores, sons e sensações. Nos dias de sol, podemos (e devemos) abrir as janelas de casa e deixar correr o ar fresco, sentando-nos à janela apreciando os raios de sol e ouvindo os pássaros.