O que fazer quando o inimaginável acontece? Como fazer o luto de alguém que, no sentido tradicional da palavra, não conhecemos? O Mãe-Me-Quer esteve à conversa com Daniela Vieira e Taivan Muller, um casal de terapeutas brasileiros a viver em Portugal, que lidou com a perda gestacional no meio de uma pandemia.
Daniela e Taivan residem em Vila Nova de Poiares, distrito de Coimbra. Estão casados há quase dois anos e decidiram que 2020 seria o ano em que tentariam ter filhos. “Antes disso, nunca tinha parado muito para pensar nessa questão do aborto espontâneo”, diz Daniela.
“É algo natural que parece que ao mesmo tempo foi transformado em algo que não é natural. Esse tabu acaba penalizando muito a mulher”, desabafou Daniela, tendo em conta que segundo as suas pesquisas, 30% das gestações terminam em aborto espontâneo.
Um luto solitário
A perda gestacional “divide-se” em dois possíveis eventos: o aborto espontâneo e a perda perinatal. Daniela sofreu um aborto espontâneo.
“É uma dor muito solitária no geral”, destacou a terapeuta e também ex-jornalista, referindo-se sobretudo ao facto de a mulher ainda não ter uma barriga muito notória e ainda nem a confirmação do sexo da criança. “Mas para ela, já é um filho”.
“Tenho a sorte de ter um marido muito presente. Mas o que tenho percebido aqui em Portugal também, é que é um tabu ainda maior”, explicou, ao contar um episódio de uma mensagem que recebeu de uma portuguesa cujo marido se recusava a falar do assunto e na respetiva família que queria esconder o que tinha ocorrido.
Daniela e Taivan descobriram em maio que estavam à espera de bebé. O aborto aconteceu na sexta semana de gestação, o que significa que Daniela não teve de se submeter a nenhuma intervenção e a expulsão do feto aconteceu depois de forma natural.
Ainda assim, o choque não foi menor. O casal partilha a importância do desenvolvimento pessoal e espiritual, estudam ayurveda e Daniela procurou o apoio do desenvolvimento pessoal depois de ter passado pelo trauma da morte da mãe.
Mas quando percebeu que tinha perdido os seus bebés (era um casal de gémeos), “caiu num buraco”. “Um buraco de vergonha, de culpa. O que é que eu fiz de errado, o que é que eu fiz para merecer isto”, foram os pensamentos que lhe passaram pela cabeça.
Juntamente com uma sensação de fracasso: “quase como se não fosse mulher suficiente”. Daniela Vieira refletiu acerca daquilo que é esperado da mulher enquanto ser humano, para procriar e ser mãe. E que quando isso não acontece (ou ela não quer que aconteça), é considerada um fracasso. “Isto é algo que está na memória da sociedade.”
A mulher é considerada “de segunda classe” por não conseguir levar a gravidez até ao fim. “Existe toda esta programação da sociedade patriarcal, onde a primeira mulher, segundo os valores judaico-cristãos, é a culpa pelo pecado original e pela queda da humanidade. Por isso a mulher é sempre a culpada, mesmo quando nos definimos como ateus, isso está no nosso ADN”.
Daniela defende que as mulheres têm de se libertar desta culpa. “Se podermos falar disto, podemos tirar esse peso da mulher”, defende.
A falta de empatia perante a perda gestacional
Infelizmente, Daniela e Taivan não tiveram uma boa experiência na Maternidade Bissaya Barreto, do Centro Hospitalar Universitário de Coimbra, onde se dirigiram quando a mão começou a sentir dores e que alguma coisa se passava.
O contexto pandémico não contribuiu para a experiência do casal, visto que Daniela teve de estar completamente sozinha enquanto aguardava tratamento. “Fui muito mal atendida”, disse Daniela, que lamentou que as auxiliares e as enfermeiras não tenham demonstrado qualquer empatia pela sua situação.
Uma mulher sozinha, com dores, a perder um bebé, que foi interrogada acerca de questões burocráticas e administrativas de forma dura, como se nada se passasse.
Daniela diz que a empatia veio do médico que a atendeu e que deu seguimento aos exames e análises necessárias. Uma enfermeira decidiu dar a notícia, antes de ter a confirmação dessas análises, sendo prontamente condenada pelo médico. Um momento que Daniela Vieira diz que nunca mais vai esquecer. “Foi muito chocante para mim, porque foram outras mulheres a comportarem-se assim”.
Situações que Daniela já percebeu não serem únicas, ao conversar com outras mulheres, tanto portuguesas como brasileiras, em grupos de Facebook. “Tem de se preparar os profissionais de saúde para estas situações”.
Daniela teve de esperar duas semanas para ter a certeza “médica” que havia perdido os seus bebés. Durante esse momento, explicou ter entrado num recolhimento lutuoso de grande sofrimento.
“Mãe de Anjo”
Passar por uma perda gestacional é uma experiência bastante intensa, sendo que o casal atribui à sua espiritualidade uma grande responsabilidade na recuperação que ainda decorre. Existe a necessidade de respeitar e dar significado à dor da persa gestacional.
Daniela escreveu o livro “Mãe de Anjo”, em duas tardes, sem qualquer intenção de publicar fosse o que fosse. Foi um escape criativo que encontrou para lidar com a dor, ao contar a sua história.
Começou por ser um post no Facebook, que se tornou viral. O feedback a este post foi muito interessante, com Daniela a receber mensagens de muitas mulheres que já haviam passado por experiências semelhantes, contando as consequências dessa experiência na sua vida.
“Precisei de desenvolver mais o que tinha escrito naquele post e dar a conhecer como foi o processo de cura. O primeiro passo foi aceitar que eu já sou mãe”, revela.
“Quando eu me reconheci como mãe de “anjo”, de um ser que passou muito rápido por este mundo, mas que existiu porque eu queria que existisse, começou o meu processo de cura”.
Ao pesquisar sobre esta questão, Daniela percebeu que em Portugal não existia ainda um grupo onde se partilhasse este tipo de experiências. Neste grupo falam-se das consequências deste processo, do impacto no casamento ou na relação, do impacto na vida profissional, no apoio psicológico, entre outros tópicos.
O post que cresceu para um livro, foi desenvolvido e auto-publicado pelo casal. São eles que também o comercializam, imprimem e enviam. Já foram cópias para mulheres portuguesas, brasileiras e de outros países de língua portuguesa, um pouco por todo o mundo.
Daniela e Taiva esperam que falar sobre o tema do aborto espontâneo deixe de ser tabu. Pode acompanhar o Projeto Mãe de Anjo no facebook e site oficial, onde pode adquirir o livro “Mãe de Anjo”.