Mário Cordeiro foi pai e avô cinco vezes. Como se isso não bastasse, lida com crianças numa base diária no consultório situado na Avenida Guerra Junqueiro, em Lisboa.
É um dos pediatras mais conhecidos na esfera nacional e o currículo atesta essa realidade: é membro da Sociedade Portuguesa de Pediatria e da British Association for Community Child Health.
Os livros que escreveu são, muito provavelmente, os responsáveis máximos pela fama já alcançada. O Grande Livro do Bebé vai na décima edição mas é a obra mais recente, que chegou às livrarias na última sexta-feira, o motivo de conversa com o Observador.
Intitulado Educar com Amor (Esfera dos Livros), promete ser um guia de afetos para que os filhos cresçam felizes e equilibrados. Para Mário Cordeiro, aos pais cabe a missão de ensinar as crianças, mas nem por isso a escola foge à mesma responsabilidade: a boa educação do filho é o resultado de um esforço comum. E o que dizer dos castigos? Devem ser justos e aplicados tendo em conta o ato praticado e não a criança enquanto pessoa.
Porque hoje em dia é mais difícil criar uma família, o pediatra diz que é essencial existir tempo tanto para os pais como para os filhos. Acima de tudo, as crianças não podem escravizar os progenitores e devem tentar ser autónomas. Mais do que “lições”, oferece conselhos gerais e, em particular, relacionados com o regresso às aulas: retomar os ritmos uma semana antes da rentrée e aproveitar esse período para ver manuais, mochilas e horários são algumas das sugestões.
“Educar Com Amor”
Porquê este título? O que é Educar com Amor?
Pode parecer redundante, mas se fosse “10 maneiras de educar” poderia soar a receita. E isto não é uma receita. O que defendo é que não há educação sem amor, nem amor sem educação. Educar é dar armas para o percurso de vida das crianças. Além disso, é conseguir que estas percebam que a vida delas não vai gravitar à volta do seu umbigo. Daí a velha máxima que os nossos direitos acabam quando pisamos os direitos dos outros. É uma expressão banalizada, mas tem uma profundidade enorme. Compatibilizar o puzzle dos desejos de sete mil milhões de pessoas é muito complicado. E, por isso, a educação é realmente uma preparação para que a pessoa seja feliz, descubra os seus talentos, seja bem-sucedida a vários níveis e perceba que há limites.
Qual é o peso do afeto quando se educa uma criança?
O amor tem de estar sempre presente. Para que as relações entre pais e filhos sejam saudáveis estas devem ser marcadas pelo amor oblativo, o amor que não se cobra e que existe apenas porque sim. No limite é dizer-se “eu não preciso de ti para nada, mas gosto de estar contigo”. O amor dos pais pelos filhos não tem razão de ser, a não ser o próprio amor. Mas isto não quer dizer que as crianças possam fazer tudo que querem. Calma! E mesmo quando estamos tristes e desiludidos com os nossos filhos, não podemos esquecer que os amamos. Eles têm de saber isso para poderem replicar o comportamento.
Castigar também é sinal de amor?
Claro. Castigar, no fundo, é mostrar à criança que fez mal, avaliar se esta sabia que estava a agir erradamente e, acima de tudo, estabelecer uma pena. Os pais devem agir como juízes ou árbitros. O futebol, como a vida, é um desporto de contacto em que há conflitos de interesses e tem de haver quem estabeleça regras justas – embora também haja regras estúpidas. Como pais temos de castigar os atos, não as pessoas. Um filho nosso é sempre um filho nosso. E ele é sempre querido, o que fez é que pode estar profundamente errado. Ele, como pessoa, não está em julgamento, mas sim a sua ação.
Como é que se distingue uma coisa da outra?
O filho está chateado e atira um livro do pai ou da mãe para o chão. Expressou, assim, a sua raiva e isto é não está bem. O que está errado, a pessoa ou a ação? Se for a criança, digo que ela é estúpida, que é horrível, que não gosto dela; aí a criança sente-se esmagada. Ao invés, devo dizer: “Tu és querida, adoro-te, mas o que fizeste é indecente”. Só depois dou-lhe um castigo. Assim estou a dizer-lhe que ela fez uma coisa má, mas não a estou a atacar enquanto pessoa. Um bom árbitro é aquele que deixa jogar, mas que analisa – há agravantes e atenuantes. O nosso filho continua a ser querido, mas deve ser castigado. O castigo tem de ir apenas na proporção do mal que ele fez.
A palavra “querido” é recorrente no livro e no discurso…
Vem do verbo querer. “Querido” expressa “eu quero-te”. O querer é uma coisa pessoal, é o cumulo da vontade. Quando uma pessoa diz “eu quero-te” é um ato voluntário, possessivo no bom sentido. Daí a criança sentir-se desejada e querida. O maior medo das crianças, nas várias idades (mas sobretudo nas mais pequenas), é o abandono. As crianças não têm uma noção sistémica da vida. São tão inocentes e ingénuas que acreditam nos adultos (e ainda bem). Por isso, quando um pai diz “não gosto de ti”, a consequência lógica para as crianças é pensar “ele vai-se desfazer de mim”. Temos de evitar isso. As crianças sentem-se dependentes dos pais e têm medo que estes desapareçam.
Escreve que os pais não dizem “amo o meu filho”, mas sim “adoro o meu filho”. Qual é a diferença?
Gosta-se das coisas, adoram-se os deuses e amam-se as pessoas. Aprecia-se comida, não se ama o que se come. A adoração é unilateral, da qual não se pede responsabilidade. Já amar é diferente, é bidirecional e envolve sentimentos recíprocos — quanto mais se dá, mais se tem.
Há pais que não amam os filhos?
É um juízo de valor dizer que não amam as crianças, mas há muitos pais que não o demonstram. E o não demonstrar para uma criança é igual a não amar. Voltando às metáforas futebolísticas, é como um jogador que sabe meter muitos golos, mas não mete nenhum.
Também há amor quando não há paciência por parte dos pais?
Na sociedade de hoje há uma interação constante entre as pessoas. O que é que acontece a determinada altura? Há uma necessidade de cuidarmos de nós próprios, de respirarmos e de descansarmos. Quando a pessoa chega a casa, não é que a família e o filho a irritem, mas há um conflito de interesses. O interesse dos filhos, que lá estão, é saltar para cima dos pais e, portanto, gera-se ali uma confusão. É uma vida tramada, aquela que as pessoas levam.
No fundo é preciso tempo para pais e para filhos, para cada um viver individualmente. Eu entusiasmo progressivamente os pais que são meus pacientes a ganhar algum tempo para si próprios – exceto no período de contemplação (em que a criança acabou de nascer). Para que servem as madrinhas e os padrinhos? Precisamente para carregarem um pouco do fardo quando é preciso. Acho igualmente importante que as crianças sejam cada vez mais autónomas e que possam passar algum tempo sem os pais.
É mais difícil ser-se pai hoje em dia?
Talvez existissem mais estereótipos nas gerações anteriores, isto é, o pai fazia assim e a mãe fazia assado. Não gosto de generalizar, mas de grosso modo era assim. Antes os filhos eram os “menores”, e porquê? A expressão não tem que ver com o tamanho, mas sim com menorização. O pai, por exemplo, estava quase proibido de mostrar publicamente o afeto. Agora é raro ter uma consulta em que não venha o pai e a mãe. E eu fomento isso. Antes, o homem surgia na vida da criança para a brincadeira, para a estimular, enquanto a mãe cuidava. As crianças eram um boneco que se dividia entre um e o outro nas diferentes ocasiões. Hoje os pais são mais próximos das crianças.
Quando é que a preocupação de um pai é excessiva?
Não devemos ser escravos dos nossos filhos. Eles não nos podem sugar a vida, têm de se habituar a ser autónomos e, de igual modo, saber precisar de nós. É aí que estou em desacordo com o Carlos González – em relação ao Estivill temos divergências quanto ao método do sono, do desamparo e de deixar a criança chorar, mas isso é outra história (o desamparo não faz bem a ninguém e é o contrário do amor). Em relação ao González, li que quando um filho nosso quer uma coisa temos de desligar a televisão para o ouvir. Calma! Se há direitos dos filhos, também há direitos dos pais.
O que define uma boa educação?
Gosto mais de falar em ensino e em aprendizagem. Há o ensinar, que implica informação, sabedoria e modelo. O aprender é desenvolver talentos e conhecimentos, ouvir experiências e, através delas, desenvolver sabedoria. Um bom educador é a pessoa que, na medida do possível, tenta ser coerente, consistente e justo. Mas também saber que podem haver reações àquilo que ensina, tal como a rejeição.
Que valores devem ser transmitidos às crianças?
Respeito, amor, responsabilidade, empatia, partilha e solidariedade. Mas os valores são coisas abstratas para uma criança, pelo que é preciso dar exemplos práticos. Até aos cinco, seis, anos a criança está numa fase em que predomina o concreto.
“Ensina-se e aprende-se de todo o lado, tanto com os pais como na escola.”
Quais os conselhos que dá aos pais no regresso às aulas?
Depende das idades, se é a primeira vez que a criança vai para a escola ou se há mudanças de ciclo. É bom conversar sobre o que vai acontecer, sobretudo quando na primeira classe, e explicar alguns medos: “É natural que não conheças ninguém; que penses que a professora esteja a olhar só para ti; que dos 26 não és obrigado a gostar de todos e que, a pouco e pouco, vais vendo quem tem mais que ver contigo…”. Explicar também que é preciso ser-se organizado e metódico, saber enquadrar todas as tarefas do dia-a-dia nos vários dias.
Outra coisa que é muito importante: a criança pensa que ao ir para a escola, no momento em que entra, já está a ler e a fazer contas, sente-se pressionada. Digo sempre no consultório “a última letra do abecedário geralmente é aprendida em maio, até lá tens muito tempo”. Dar uma semanada também é importante; sugiro dois euros por semana. Implica ser-se responsável: “Trabalhaste uma semana, tens aqui uma semanada. O esforço foi recompensado e o teu poder aquisitivo está na razão direta do teu trabalho”.
Das férias para as aulas há uma mudança de hábitos muito grande…
Advogo uma semana antes de começar as aulas para retomar os ritmos. Acho que é bom aproveitar esse período para ver os manuais, as mochilas, os horários, para comprar o material… E ir deitando o filho mais cedo. Trata-se de um reset tranquilo – não pode ser instantâneo.
O que é que um pai pode exigir de uma criança: qual o equilíbrio entre o trabalho e o ócio?
Exigir que cumpra (as obrigações), mas dar alguma liberdade à criança de gerir a sua vida. Sobretudo que não exija ao filho que entre no quadro de honra, que acho que é uma coisa a abater – é muito injusta, como se a honra se medisse por notas! Cada um deve-se comparar consigo próprio, tentar a excelência de si mesmo. Nós não temos competência para tudo, ponto, e temos de meter isso na cabeça dos pais e dos filhos. Em vez de carrascos, os pais devem ser juízes/árbitros.
Quais são os maiores desafios de uma criança quanto a aprender?
É encarar, na maior parte das vezes, uma escola nova e habituar-se ao estar na sala de aula. O impulso de levantar e falar é tolerado no jardim-de-infância, mas não ali (aulas da primeira classe). Por outro lado, trabalhar em grupo, adaptar-se a outros meninos e ao relacionamento com as auxiliares, que é fundamental no meio disto tudo. O pai deve observar tudo e fazer-se sócio da associação de pais para poder intervir e tentar mudar o que se pode mudar, compreender e ajudar onde pode.
O pai educa, a escola ensina?
Ensina-se e aprende-se de todo o lado, tanto com os pais como na escola. Sempre que há um momento relacional, há uma ocasião de ensino e de aprendizagem. A escola deve ensinar, não apenas a nível académico, mas também social e relacional. O mesmo com os pais. Um não substitui o outro.