O ano de 2020 trouxe inúmeros desafios para todos, inclusive pais e crianças. João Fernando Martins, psicólogo portuense, explica-nos as consequências da privação do contacto das crianças com os amiguinhos, dá dicas para evitar que os jovens se isolem nesta altura diferente das suas vidas, a que sinais devem os pais e cuidadores atentos e ajuda a entender como promover o bem-estar e tranquilidade dentro de casa, mesmo com a frustração e irritabilidade que toma de muitas famílias.
O confinamento traz mais tempo para passar em família, mas também privações, como a das crianças não terem contacto com os seus pares. Quais as consequências desta medida?
O contacto com os pares é de facto muito relevante no desenvolvimento infantil, trabalhando, entre outras, as competências sociais. Somos, como se sabe, seres que vivem em sociedade e essa vertente nas crianças está presente com muita força, sendo um fator que pode condicionar um desenvolvimento saudável.
Como podem os pais colmatar essa falta de contacto e evitar que estes se isolem?
Tendo surgido esta pandemia em 2020 e com todas as normas de confinamento que fomos obrigados a adotar, dispomos atualmente de tecnologia que apesar de não substituir na totalidade a importância do contacto físico, de certa maneira mitiga o isolamento da criança dos pares. Pode ser importante promover oportunidades à criança para falar via online com os colegas e amigos frequentemente, permitindo até brincadeiras em conjunto ou a realização de trabalhos de casa se houver essa possibilidade, embora não se deva cair em exageros.
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A que sinais de distúrbios de ansiedade infantil ou depressão infantil devem os cuidadores estar atentos?
É importante que se pense nesta fase como uma fase especial e por isso alvo de um reajuste também mental por parte de todos os elementos da família, incluindo as crianças. Acima de tudo, devem estar atentos a alterações do comportamento que não eram comuns em fases anteriores: o aumento da irritabilidade, um afastamento súbito da família (isolando-se mais no quarto por exemplo), uma tristeza persistente que se possa manifestar, podem ser sinais importantes e a valorizar.
Qual o impacto que este momento único pode ter no desenvolvimento cognitivo, afetivo e motor das crianças?
A ausência de contacto físico, quer com os amigos e colegas, quer com elementos mais velhos da família, podem ser potenciados alguns estados emocionais mais preocupantes que se poderão refletir no futuro. Uma situação destas pode provocar uma ambivalência de sentimentos na criança, uma vez que por um lado ela sente saudades dos avós, mas ao mesmo tempo experiencia o medo do contacto por uma potencial infeção e assim infligir dano a alguém que gosta. Um processo cognitivo destes pode gerar ansiedade em níveis acima do normal.
Estando os pais em regime de teletrabalho e os miúdos com ensino à distância, como poderão os pais organizar-se de forma a ter tempo para tudo?
É sem dúvida uma tarefa hercúlea aquela que as famílias estão neste momento a fazer. Acho que o mais importante é tentar manter as rotinas o mais estáveis possível. [Além disso,] Promover a variedade de tarefas pode ser importante assim como ter presente de que estamos a viver um momento diferente e mais limitado. Logo, a produtividade deve ser encarada com expectativas mais reduzidas para que não se chegue frustrado ao fim do dia por não se ter conseguido realizar as tarefas a que nos propusemos.
Fechados em casa, as emoções do agregado familiar estão à flor da pele. O que recomenda para que, nos lares em que a irritabilidade e falta de paciência começa a ganhar espaço, prevaleça a paz, o bem-estar e o equilíbrio?
Os conflitos na família têm uma boa possibilidade de aumentar, assim como a taxa de divórcios e separações. Isto porque os hábitos e a proximidade também se alteraram. É comum agora as famílias terem um maior grau de proximidade entre eles, mas nenhuma (pelo menos fisicamente) com os amigos e restantes familiares. Esta ambivalência pode chocar alguns indivíduos, principalmente os que tinham rotinas sociais frequentes, como o caso do café semanal com os amigos ou do jogo de futebol às quintas à noite. Esta intensidade pode provocar um desgaste relevante do ponto de vista emocional, até porque o confinamento já de si traz uma sensação de claustrofobia que para algumas pessoas pode ser bem dolorosa. Uma das coisas que tento promover em pacientes que se sentem assim é que tentem incluir dentro da rotina diária um espaço (nem que sejam 10 minutos) exclusivamente para si. Que o façam indo para um local da casa reservado, como o quarto ou o escritório e aproveitem para fazer algum exercício que favoreça a diminuição dos níveis de ansiedade, como a respiração abdominal por exemplo.
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Há muita controvérsia no que toca aos pareceres relativos aos passeios higiénicos.
A nível de saúde mental, quão importante é fazer estas saídas regularmente?
O passeio higiénico é, na minha perspetiva, uma boa medida. Penso que seria bastante mais doloroso do ponto de vista mental ficar em confinamento sem essa atividade. Acho até uma medida democrática, uma vez que as pessoas não vivem todas em casas idênticas. Uma família que viva numa casa com terreno ou jardim terá se calhar menos necessidade de um passeio higiénico do que outra que viva num 3.º andar sem varanda. Acho que, principalmente para as crianças, visto que foi um isolamento longo, foi benéfica a possibilidade de sair, embora com todas as medidas de segurança necessárias, obviamente.
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Como acha que os jovens do 11.º e 12.º ano, que vão regressar à escola no próximo dia 18 de maio, vão lidar com a presença física e, simultaneamente, com a continuação das medidas de distanciamento social?
Penso que será muito variável de grupo para grupo e de indivíduo para indivíduo. Apesar das medidas de proteção aplicadas pelas escolas se esperem restritas, a comunidade escolar é, como em todas as comunidades, um misto de personalidades. Nesse misto, uns terão mais facilidade na readaptação, enquanto outros apresentarão mais dificuldade, muito condicionados pelo medo do vírus, ou por características suas mais introspetivas. Preocupa-me o distanciamento social. Nestas idades torna-se muito difícil promover uma medida tão restritiva, embora absolutamente necessária. Esperemos para ver.
Com base nos casos de outros países, quais são, na sua opinião, as possíveis consequências para a saúde mental desta quarentena alargada e a continuação de medidas de restrição?
De momento ainda não temos investigação suficiente para podermos indicar com evidência as consequências para a saúde mental desta quarentena. Podemos recorrer a situações semelhantes do passado, embora com cautela, uma vez que este fenómeno é, em grande parte novo, nunca tendo acontecido a nível mundial, com estes contornos. Existem algumas evidências em situações como a 2ª Guerra mundial, onde as taxas de depressão e tentativas de suicídio se mostraram mais reduzidas do que o expectável. Em todo o caso, e apesar de muitas vezes se comparar esta situação a uma guerra, os seus contornos são bem diferentes, muito pela questão do confinamento. Por um lado, na guerra o confinamento não acontecia com esta intensidade nem por um período consecutivo tão longo. Por outro, pela ausência de produção. Nas guerras, apesar da quebra, a economia é obrigada a reajustar-se, mas em todo o caso continua a produzir. Neste confinamento, paira um sentimento de impotência e uma sensação de inutilidade, o que não deixa de ser um estado emocional a considerar na saúde mental.
Como podemos todos nós fortalecer a nossa psique durante este período extraordinário que vivemos?
Acho que a gestão de expectativas pode ser um ponto importante a considerar. O abrandar a “máquina” para uma velocidade mais lenta, não ficando obcecado pela produção e atividade, torna-se um fator importante numa altura em que as nossas oportunidades são também reduzidas.
Isto não quer dizer que não nos devamos motivar, muito menos produzir. Mas acho que devido às circunstâncias não deveríamos colocar tanta pressão nos nossos objetivos e nas tarefas. Este é um momento de humanidade, onde todos estamos a fazer um esforço para proteger os mais vulneráveis. Acho que essa é a principal lição que todos vamos retirar desta situação. E estar consciente da nossa humanidade e da nossa vulnerabilidade pode, em muitos casos, fortalecer-nos.