Quando pesquisa algum tema relacionado com pediatria, seja na internet ou em livros da especialidade, pode confrontar-se com opiniões e recomendações variadas que, por vezes, chegam a ser antagónicas. Ao longo dos tempos, os resultados de novas pesquisas e as mudanças socioculturais têm influenciado as práticas e as crenças sobre a alimentação, o sono ou a educação infantil, por exemplo. Conheça alguns mitos da pediatria e da parentalidade mais comuns.
Muitas questões da pediatria são objeto de estudo e estão na origem de inúmeras pesquisas levando a novas descobertas que, em alguns casos, resultam em novas orientações. A informação abaixo não pretende constituir-se num guia de orientação. Fale com o seu pediatra. Só ele poderá esclarecer todas as suas dúvidas.
Mitos da pediatria e da parentalidade
Mito 1: A febre é um sintoma do nascimento dos dentes
O aumento da temperatura é um sintoma clássico associado ao nascimento dos dentes no bebé. Contudo, este é mais um dos mitos da pediatra contrariado em 2016 por um estudo publicado na revista Pediatrics que concluiu que o nascimento dos primeiros dentes não está relacionado com a febre alta (ver Nascimento dos dentes no bebé causa febre?).
Mito 2: Quando o ranho da criança fica verde é necessário antibiótico
Quando o ranho das crianças adquire uma tonalidade verde, a maioria dos pais preocupa-se com a possibilidade de a infeção ser mais séria do que pensavam inicialmente e de ser necessário antibiótico.
A maioria das constipações não complicadas resolve-se entre 10 a 12 dias com o corrimento nasal a mudar da tonalidade amarela para verde entre o terceiro e o quinto dia. A mudança de cor não é necessariamente um sinal de que a infeção piorou mas sim que o organismo da criança está a lutar contra a infeção. A concentração de glóbulos brancos e anticorpos causa oxidação o que justifica a mudança de cor.
Se o corrimento nasal se prolongar para além de duas semanas, então está na altura de levar a criança ao médico para ser devidamente observada.
Mito 3. Adicionar cereais à fórmula infantil melhora o sono
Vários estudos mostraram que adicionar cereais à fórmula infantil não altera a duração do sono. Sendo a fome apenas uma das muitas razões possíveis para os bebés acordarem à noite, acrescentar cereais ao leite parece não resolver o problema dos despertares noturnos.
Para além disso, esta prática tem uma possível desvantagem que é aumentar o risco de obesidade numa idade muito precoce (ver 10 Erros que podem levar à obesidade no primeiro ano de vida).
Mito 4: Excluir certos alimentos evita alergias nos bebés
Excluir alimentos como peixe e ovo nos primeiros meses da diversificação alimentar pode não evitar o desenvolvimento de alergias. À data, não há evidência científica convincente de que a privação ou o atraso da introdução de alimentos potencialmente alergénicos reduza a alergia quer em bebés considerados de risco (por história familiar positiva) ou mesmo nos não considerados de risco (fonte: ESPGHAN).
Para o Comité de Nutrição da Sociedade Francesa de Pediatria, a diversificação alimentar não deve ser iniciada antes dos 6 meses, idade a partir da qual pode ser introduzido quer o peixe, quer o ovo. Todavia para a Sociedade Francesa, alimentos com forte potencial alérgico, como é o caso do kiwi, do aipo, dos crustáceos, dos alimentos do mar e dos frutos gordos em especial o amendoim, só devem ser introduzidos depois do primeiro ano de vida.
As atuais recomendações da Organização Mundial da Saúde vão no sentido do aleitamento materno exclusivo durante os primeiros 6 meses de vida. É ainda desejável que o aleitamento materno prossiga ao longo de todo o programa de diversificação alimentar e enquanto for mutuamente desejado pela mãe e pelo bebé.
Mito 5: Os bebés não precisam de suplementação
De acordo com as recomendações da Sociedade Portuguesa de Pediatria algumas crianças beneficiam da suplementação de alguns minerais e/ou vitaminas. Em particular, a suplementação em zinco com a introdução dos primeiros alimentos sólidos, a suplementação em vitamina D e, entre os 4 e os 6 meses, a suplementação em ferro.
Mito 6: Mais fatores de risco para a morte súbita
A morte súbita, situação em que um bebé aparentemente saudável morre subitamente e sem razão aparente, não tem outras causas para além do “abafamento” dos bebés.
Estudos recentes apontam para outros fatores de risco, nomeadamente: pais fumadores, sobreaquecimento, colchão mole ou deitar o bebé de barriga para baixo para dormir.
Mito 7: O frio constipa
Segundo o pediatra Hugo Rodrigues, não é correto atribuir ao frio a responsabilidade pelas constipações. No tempo frio, há mais vírus e os espaços são menos arejados, reunindo-se as condições ideais para o aparecimento de infeções respiratórias. Mas a relação entre o frio e as constipações não vai para além desta coincidência.
Mito 8: Os bebés não têm preferência por alimentos doces ou salgados
O bebé humano nasce com um gosto inato para o doce e uma aversão ao amargo. A preferência pelo salgado vai-se desenvolvendo a partir do segundo semestre de vida até atingir um pico pelos 3 – 4 anos. Sabe-se agora que a exposição precoce a alimentos salgados aumenta o interesse dos bebés por esse sabor.
Também se sabe a janela para a habituação aos sabores é estreita, começando
a fechar-se pelos 2 anos e encerrando aos 3 anos, ou seja uma criança com um portfolio alimentar reduzido pelos 3 anos, vai manter essa monotonia alimentar até à adolescência, consumindo geralmente uma dieta rica em calorias mas pobre em nutrientes.
Mito 9: A água para preparar o biberão precisa de ser fervida
Este é um tema bastante controverso. Se mora numa localidade com água potável (da “companhia”) provavelmente não precisa de ferver a água antes de preparar o biberão ou para saciar a sede do bebé. O mesmo se passa com a água engarrafada proveniente de fonte segura.
Já a água de origem desconhecida, de furo, poço ou nascente pública deve ser sempre fervida durante cinco minutos antes de ser usada na alimentação de bebés, crianças e adultos.
Mito 10: Não se deve tomar banho após as refeições
A paragem da digestão é provocada por um défice de irrigação sanguínea no cérebro e consequente perda de consciência quando se acaba uma refeição e se entra na água fria, como na água do mar.
No entanto, esperar pela digestão para dar banho ao bebé é mais um dos mitos da pediatria. O problema não é o banho, mas sim a temperatura da água. Quando a água está morna não existe choque térmico. Segundo o pediatra Hugo Rodrigues, pode-se tomar banho antes ou depois de comer, sem problema nenhum, desde que se controle a temperatura da água.
Mito 11: Todas as crianças deixam a fralda ao mesmo tempo
As crianças desenvolvem-se ao seu próprio ritmo. Fazer comparações com outras crianças e esperar que todas façam o que é suposto fazer na mesma idade é um mito.
Atualmente defende-se que deixar as fraldas precocemente está fora de questão. O início do treino do bacio só deve acontecer quando a criança dá sinais de que está pronta para o fazer.
Tentar o treino do bacio cedo demais, ou ficar impaciente com o processo de deixar as fraldas, pode causar ansiedade na criança e fazer com que ela evite ir à casa de banho, com resultado contrário ao pretendido (ver Treino do bacio).
Mito 12: A masturbação infantil é sinal de doença
A masturbação é uma forma de expressão sexual normal e natural da infância. Não é, de forma alguma, sinal de patologia ou problema.
Repreender, castigar ou fazer associações negativas à sexualidade da criança pode provocar um efeito adverso para além da possibilidade de promover o desenvolvimento de uma série de preconceitos em relação à expressão sexual futura.
Mito 13: As crianças não devem conviver com animais domésticos
Após vários anos de alerta para o risco potencial de alergias no contacto com cães, gatos, pássaros e outros animais domésticos, sabe-se agora que o convívio com os animais é positivo e até desejável para o bom desenvolvimento da criança (ver Tem um filho sensível? Saiba como um animal de estimação o pode beneficiar).
Mito 14: As crianças não podem ser contrariadas
Entre os dois e os três anos, a criança passa por um pico de crescimento, a chamada fase das birras. Quando contrariada, é normal que se atire para o chão e faça um grande espetáculo, independentemente do local onde se encontra, causando grande embaraço aos pais.
Muitos pedagogos e especialistas se dedicam a estudar este comportamento na tentativa de perceber qual a resposta adequada. Recentemente, tem-se vindo a reforçar a importância dos pais saberem dizer “não”. O mais importante? Fazê-lo de forma coerente. O amor e o respeito mútuos prevalecem, mas a criança começa a compreender que há regras e limites.
Mito 15: As rotinas e as regras podem ficar para mais tarde
Estabelecer rotinas (sono, alimentação) e regras de comportamento é importante desde o início. As rotinas servem para simplificar a vida e não para a tornar ainda mais complicada.
Quando as famílias têm rotinas adaptadas à sua realidade e se tornam fáceis de gerir, tornam-se num poderoso aliado. Educar e disciplinar também são atos de amor (ver Rotinas e desenvolvimento: que relação?).
Mito 16: Os andarilhos ajudam as crianças a andar mais cedo
Ao contrário do que muitos pais possam pensar, o andarilho nem ajuda o bebé a andar mais cedo nem é adequado ao desenvolvimento da marcha. Se usa um andarilho em casa, certifique-se que a área é segura e que o acesso às escadas está vedado. A criança nunca deve ser deixada sozinha quando usa um andarilho (ver Andarilhos = sarilhos).
Mito 17: Punição e disciplina são a mesmas coisa
Disciplinar não é o mesmo que punir. A disciplina tem como objetivo ajudar a criança a desenvolver-se de forma segura e num ambiente amoroso.
Ensinar sobre o que é certo / errado, saber reconhecer e respeitar os direitos dos outros, aprender a distinguir entre comportamentos que são ou não aceitáveis, permite à criança desenvolver-se com auto-confiança, auto-controlo, dotando-a de estratégias para aprender a gerir as suas frustrações perante as contrariedades da vida.
O modo como os pais se comportam quando disciplinam os filhos irá determinar o comportamento dos seus filhos no futuro. Quando os pais não são coerentes e firmes, quando cedem perante um determinado comportamento numa ocasião para o censurar logo a seguir, estão a enviar sinais incongruentes à criança.
É normal as crianças testarem os seus limites e quando os pais são inconsistentes na definição e na aplicação dos limites, estão a encorajar comportamentos indesejados.
Mito 18: As crianças não sofrem de depressão e, se sofrerem, não precisam de tratamento
A depressão infantil tem sido um problema de saúde negligenciado ao longo dos tempos. Uma criança deprimida tem menor desempenho escolar, dificuldades de aprendizagem, menos auto-estima e dificuldade em se relacionar socialmente.
Segundo a Academia Americana de Pediatria, o suicídio é a terceira principal causa de morte entre crianças e adolescentes, logo após os acidentes e a violência. Além disso, o pensamento depressivo pode tornar-se parte da personalidade em desenvolvimento de uma criança, marcando a sua personalidade para toda a vida.
Os sintomas mais comuns de depressão relatados em crianças e adolescentes são tristeza, incapacidade de sentir prazer, irritabilidade, fadiga, insónia, falta de auto-estima e introversão social.
As crianças são mais propensas a sofrer sintomas físicos (dores de estômago e de cabeça, por exemplo), alucinações, agitação, medos e fobias. Nos adolescentes, prevalecem os pensamentos desesperados, alterações de peso e sonolência diurna excessiva.
Mito 19: A criança deve comer tudo o que tem no prato
Forçar a criança a comer quando não está com fome é uma boa forma de criar problemas de alimentação no futuro. As refeições devem ser momentos agradáveis em família e não um campo de batalha.
Os bons hábitos alimentares criam-se logo com a apresentação das primeiras refeições. Pratos variados, com vários sabores e texturas, não mascarar o sabor dos alimentos, não desistir quando a criança não aprecia determinado alimento (as crianças podem precisar de 12 a 15 provas antes de aprenderem a gostar de um novo sabor), não usar uns alimentos como recompensa em detrimento de outros, apostar nos alimentos naturais, nas frutas e legumes fazem parte das recomendações atuais.
Uma criança que tem fome não deixa de se alimentar. Coloque menos quantidade no prato e ofereça uma grande variedade de sabores. Evite as bebidas ricas em açúcar e os petiscos calóricos e pouco nutritivos entre as refeições principais.
Mito 20: A punição física é uma técnica de disciplina eficaz
Nas últimas décadas têm sido realizados vários estudos com o objetivo de tentar compreender os efeitos associados aos castigos físicos. Nunca foi demonstrado que as palmadas sejam um meio de disciplina mais eficaz do que outras formas de disciplina. Para além disso, a punição física irá tornar a criança mais agressiva e irritada, ensinado-a que, às vezes, é aceitável bater nos outros.
Participação nas tarefas domésticas: porque é importante para as crianças?
Bibliografia: http://scienceline.org/2010/02/what-makes-snot-turn-green/ [acedido em 10/05/2018]; Acta Pediatrica Portortuguesa 2012:43(2):S17-S40; Dr. Hugo Rodrigues, Pediatra [artigos do autor publicados no Mãe-Me-Quer]; Dr. Armando Fernandes, especialista em Pediatria do Desenvolvimento no Centro Pediátrico de Telheiras [artigos do autor publicados no Mãe-Me-Quer].