Imagem retirada do filme “Cegonhas”, 2016
A lenda da cegonha que leva os bebés na ponta do bico para as entregar às respetivas famílias surgiu na Europa. Seria, no entanto, no século XIX, com o conto As Cegonhas de Hans Christian Andersen, que esta lenda se popularizou. Segundo este mestre da literatura de nacionalidade dinamarquesa, “é da realidade que nascem os contos mais espantosos.”
As Cegonhas, de Hans Christian Andersen
Na última casa de uma pequena aldeia, havia um ninho de cegonhas, onde moravam a mãe cegonha e os seus quatro filhos, que estendiam os bicos finos e pretos. Eram tão pequenos que ainda não tinham os bicos vermelhos.
O pai estava um bocadinho afastado, muito direito na beira do telhado. Para ajudar nalguma coisa, tinha levantado uma pata e vigiava as redondezas. Mas estava tão quieto que até parecia talhado em madeira. “Deve dar um ar muito elegante a minha mulher ter uma sentinela a guardar o ninho, mas como ninguém sabe que sou marido dela, todos devem achar que me mandaram parar aqui. Que fino!”, pensou ele. E continuou apoiado numa pata.
Uma canção assustadora para as cegonhas
Lá em baixo, várias crianças brincavam na rua. Quando viu as cegonhas, um dos rapazinhos mais traquinas começou a cantar a velha canção das cegonhas, no que foi logo seguido pelos outros. Mas cada um cantou como lhe apeteceu.
Cegonha, foge a voar,
Para eu não te apanhar!
A tua mulher tudo vai fazer
Para os filhos proteger.
O primeiro será enforcado,
O segundo trespassado,
O terceiro, baleado,
E o quarto, afogado!
– Ouve o que os meninos estão a cantar – disseram as pequenas cegonhas. -Dizem que vamos ser enforcadas e mortas a tiro!
– Não vos aflijais respondeu a mãe cegonha. – Não ouças o que eles dizem. Não podem fazer-nos nada.
Mas as crianças da aldeia continuaram a cantar, apontando para as cegonhas. Um dos rapazes, que se chamava Pedro, disse que era uma maldade fazer troça dos animais e não se juntou aos outros. Entretanto, a mãe cegonha consolava os filhos:
– Não é nada. Vede como o vosso pai esta ali quietinho, ainda por cima só numa pata!
– Mas temos tanto medo! – responderam as cegonhinhas, enterrando a cabeça dentro do ninho.
Longas viagens
No dia seguinte, quando as crianças se juntaram outra vez na rua para brincar e viram as cegonhas , começaram de novo a cantar:
O primeiro será enforcado,
O segundo, trespassado!
– Vamos ser mesmo enforcadas e trespassadas? – perguntaram as pequenas cegonhas.
– Não, claro que não! – respondeu a mãe. Vou ensinar-vos a voar e depois iremos para os campos e visitaremos as rãs, que nos farão uma vénia e coaxarão: “Coaxe! Coaxe!” A seguir, comemo-las. Vai ser muito divertido!
– E depois? – quiseram saber as cegonhinhas.
– Depois, as cegonhas que vivem neste país juntam-se todas para começar os exercícios do outono. Mas, para isso, têm de saber voar muito bem. É muito importante. O general cegonha trespassa com o bico quem não sabe voar bem. Portanto, muita atenção quando o exercício começar!
– Então, vamos ser trespassadas, como dizem os meninos! Ouvi, lá estão eles outra vez!
A mãe cegonha conforta os filhos
– Ouçam-me a mim e não os patetas dos rapazes – disse a mãe cegonha. – Depois do grande exercício do outono, voaremos sobre montanhas e florestas para os países quentes, oh! muito, muito longe daqui. Vamos para o Egito, onde há casas de pedras triangulares cujas pontas se erguem para além das nuvens. Chamam-lhes pirâmides e são mais velhas do que qualquer cegonha pode imaginar. Existe lá um rio que galga as margens e transforma tudo em lama e onde podemos saborear rãs.
– Que bom! – aplaudiram as pequenas cegonhas.
– Sim, vive-se lá muito bem. Não se faz nada durante o dia senão comer. E enquanto passamos uns tempos tão bons, as árvores aqui do norte não têm uma única folha. Está tanto frio que as nuvens congelam em bocados e caem do céu em farrapinhos brancos. – A mãe cegonha referia-se à neve, mas nem ela sabia explicar melhor.
– Então os meninos malcriados também congelam em bocados? – perguntaram as cegonhinhas.
– Não, em bocados não. Mas quase. Têm de passar os dias em quartos escuros enquanto vocês podem voar para outros países onde há flores e calor.
As jovens cegonhas crescem
Passou algum tempo. As jovens cegonhas cresceram tanto que já conseguiam pôr-se direitas no ninho e olhar em volta. O pai cegonha levava-lhes todos os dias rãs deliciosas, pequenas cobras e todas as gulodices que conseguia encontrar. Era tão engraçado ver as brincadeiras que fazia para as divertir! Pousava a cabeça nas costas, matraqueava com o bico como se fosse uma rela e contava-lhes histórias do pântano.
– Agora, têm que aprender a voar! – disse um dia a mãe cegonha. As quatro pequenas cegonhas tiveram de ir para o telhado. Oh, como cambalearam! Apesar de se equilibrarem com as asas, quase caíram.
Começam as aulas de voo
– Olhem para mim – ordenou a mãe. – Têm que manter a cabeça assim e de pôr as patas assim. Um, dois! Um, dois! Isto ajudar-vos-á!
– Voou um bocadinho, e os jovens deram um saltinho sem nenhuma ajuda. Bum! Caíram no mesmo sítio! Ainda eram muito inexperientes.
– Não quero aprender a voar! – resmungou um deles, voltando a subir para o ninho – Quero lá saber de ir para os países quentes!
– Queres morrer de frio quando chegar o inverno? Queres que os meninos da aldeia venham cá enforcar-te, trespassar-te e dar-te um tiro? Vou chamá-los!
– Oh, não! gritou a cegonhinha, saltando outra vez para o telhado e juntando-se às outras. Ao terceiro dia, como já conseguiam voar um bocadinho, pensaram que eram capazes de planar no ar para descansar; gostariam de fazê-lo, mas começaram a cair e tiveram de bater as asas muito depressa. Lá em baixo, os meninos da aldeia corriam e cantavam a sua canção:
Cegonha, foge a voar…
– Vamos lá abaixo tirar-lhes os olhos? – perguntaram as jovens cegonhas.
– Não, deixa-os lá – respondeu a mãe. – Escutem-me bem, que isto é muito importante! Um, dois, três! Voamos para a direita. Um, dois, três! Para a esquerda, à volta da chaminé. Muito bem. Bateram tão bem as asas desta última vez que amanhã podem vir comigo ao pântano, onde encontrarão muitas cegonhas elegantes com os seus filhos. Espero que lhes mostrem que vos dei a melhor das educações. E, sobretudo, andem direitas. Parece bem e é muito elegante.
– Mas não havemos de nos vingar daqueles fedelhos malcriados? – perguntaram as jovens cegonhas.
– Deixem-nos gritar quanto quiserem! Afinal de contas, vocês é que voarão para as nuvens e irão até à terra das pirâmides, enquanto eles morrerão de frio, sem ter uma única folha verde ou uma maçã doce!
As jovens cegonhas decidem vingar-se das crianças
– Vamos vingar-nos, sussurraram elas umas para as outras. Depois, recomeçaram os exercícios de voo.
De todos os meninos que cantavam na rua, o que mais troçava era o que começara tudo. Tratava-se de um rapazola que não devia ter mais de seis anos. Mas, para as pequenas cegonhas, era como se tivesse mais de cem porque era muito maior do que os pais. Que sabiam elas da idade das crianças e do tamanho das pessoas?
Por isso, a sua vingança abater-se-ia sobre aquele fedelho porque fora ele que começara a troçar delas e não parava com a canção. As cegonhinhas estavam muito zangadas e, quanto mais cresciam, menos suportavam a troça. Por fim, a mãe teve de lhes prometer que as deixava vingar-se, mas só no último dia antes de partirem.
– Primeiro, temos de ver como se portam no exame final. Se vocês se saírem mal, o general trespassar-vos-á com o bico e darão razão aos rapazes da aldeia. Portanto, vamos esperar.
– Está bem. Vocês vão ver. – E as cegonhinhas esforçaram-se muito nas aulas de voo. Praticavam tanto todos os dias que em breve era um prazer vê-las voar com leveza e graça.
A vingança das cegonhas
Chegou o outono. A pouco e pouco, as cegonhas juntaram-se para iniciar a viagem rumo aos países que têm clima quente durante o nosso inverno. E começou o exame. Atravessaram bosques e florestas para mostrarem como voavam bem. É que tinham uma grande viagem pela frente! As cegonhinhas portaram-se tão bem que tiveram notas excelentes: “Muito bom com rãs e cobras.” Era a melhor parte, porque agora podiam comer rãs e cobras e foi o que fizeram.
– Chegou a altura de nos vingarmos! – gritaram.
– Está muito bem – disse a mãe cegonha. – Já pensei no que havemos de fazer. Conheço o lago onde os bebés ficam até as cegonhas irem buscá-los para os entregarem aos pais. Aqueles bonitos meninos estão a dormir e têm sonhos tão doces como nunca mais terão. Todos os pais querem um filhinho assim e todas as crianças desejam ter uma irmãzinha ou um irmãzinho. Vamos voar até ao lago e dar um irmão a cada criança da aldeia que não cantou esta canção tão maldosa e que não troçou de nós. Os outros não recebem nada.
– Mas que havemos de fazer àquele rapazola mau que começou a cantiga? – gritaram as cegonhinhas.
– No lago, está um bebé, que sonhou que morria. Vamos dar-lho a ele.
Há de chorar por lhe termos levado um irmãozinho morto. Mas não se esqueçam do rapazinho que disse que era uma maldade troçar dos animais! A esse, vamos levar-lhe um irmãozinho e uma irmãzinha e, como o seu nome é Pedro, vocês passarão a chamar-se todas Pedro!
E assim aconteceu. É por isso que, até hoje, todas as cegonhas se chamam Pedro.
Mamã, de onde vêm os bebés? A lenda da cegonha